domingo, 27 de maio de 2012 | By: Doracino Naves

Derrubando flores

Já fiz muita coisa na vida. Fui engraxate, empacotador de farinha de trigo, vendedor de tecidos, contador, político, funcionário público. Hoje sou jornalista. A verdade é que os sonhos mudam com o tempo. 

Quando era menino queria ser barbeiro. Nessa época tinha até ídolos nessa profissão: Divane e Fio, mestres da tesoura a tosar a cabeleireira empoeirada da turma da Vila Nova. Divane tinha um cabelo à James Dean, de fazer inveja ao Elvis Presley. 

Eu pensava que o cabelo dos seus fregueses fosse ficar igual ao dele. Comecei a desiludir com a profissão depois de perceber que os cabelos que ele cortava não tinha topete.
 
Fio, o outro barbeiro, exibia uma cabeleira lisa e brilhosa. Descobri que o brilho do cabelo de Fio era Brilhantina Glostora, a marca do brilho intenso. Era tudo propaganda enganosa. Amarrei o burro dos sonhos em outro lugar. Da Vila Nova fui à Hollyowood. Queria ser ator que nem Burt Lancaster. Um dia me falaram que ele comprara uma fazenda em Anápolis. Verdade ou mentira a notícia matou o meu sonho; Goiânia ficara muito perto dos estúdios de Hollyowood. Que ousadia a de Burt Lancaster, deixar o eldorado do cinema para morar em Anápolis... Em 1965 arrumei emprego numa loja de tecidos.
 
Deixei de ser vendedor de panos após ser cantado por uma miss Goiás. Ela era linda. Mas, achei um absurdo a moça cantar o rapaz; o certo seria o contrário. O detalhe é que o pai dela era amigo do dono da loja. Antes do bororó, pedi demissão. Claro, me comportei como o bobão da Lorinda. O tempo passou rápido. Na política, em 1992, ao consultar os meus minguados votos nas urnas do Clube Antônio Ferreira Pacheco descobri que a eleição de muitos vereadores acontecera na véspera, com os votos comprados com dinheiro. Fui fazer jornalismo. O meu mestre no jornalismo é Alberto Dines - apresentador do Observatório da Imprensa -, pioneiro no Brasil na discussão da mídia.
 
Noutro dia, enquanto via a TV Senado, Collor de Mello, ex-presidente da república, hoje senador, criticava a imprensa brasileira. E aí veio o pior: citou um pensamento de Dines. Quase caí na cilada da superficialidade verbal. Pensei comigo: novamente amarrei meu burro no lugar errado. Refleti melhor. Esse Collor, que nunca foi de confiança, sofisma ao usar a ideia de Dines para construir o seu discurso raivoso. O conceito de Dines estava correto, mas o contexto, errado. Mudei de canal; continuo tendo Alberto Dines como exemplo de jornalista.
 
Falo dessas coisas porque me descubro, definitivamente, dual. Sou gêmeo de mim. Um dos gêmeos voa às alturas e o outro permanece preso a terra. Tal qual a lagarta e a borboleta, o homem vive uma dualidade inquietante. A fase crisálida é para pensar no dicotômico viver. É nesse momento que o ser humano faz sons de crisálida par espantar os predadores. Entre o ideal a realidade há um longo caminho com uma travessia difícil a percorrer o tempo de mudanças interiores.
 
Talvez tudo já seja determinado pelo alto. A senha do nosso destino já nos foi revelada. Sendo assim, ela não se perdeu. Está dentro de um pote de barro, escondido no fundo de um baú, guardado numa casa perdida no meio da mata. Já fiz muita coisa na vida. Se elas foram importantes, não sei.
Acho que mereço pescar no Araguaia, agitar a água rasa, derrubar flores e curvar-me ao sol.
 
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizes.net). Escreve aos sábados no DM.

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