segunda-feira, 21 de maio de 2012 | By: Doracino Naves

Plangências

Plangente é uma das mais bonitas palavras da língua portuguesa. Percebo-a carregada de significados e símbolos; ela lembra o som da viola caipira que ecoa no sertão e sobe aos céus num lamento inconfundível. Pois é, viver no ermo do interior causa nostalgia e a saudade, mesmo de algo do qual não se tem plena consciência, é uma companhia inseparável. O violeiro toca a sua viola com a alma nos dedos. Talvez, quando canta, pensa na distante terra dos seus pais. O mais certo é que a cordas da viola choram de saudade da amada ausente.

E o cair da tarde no sertão vem acompanhado de plangente entardecer. São seis horas. O cheiro do capim e da mata, inconfundíveis, acorda com leveza os outros sentidos do sertanejo: a visão se turva com a fuga do sol para o descanso diário; os ouvidos, atentos, escutam a floresta crescer no fundo do grotão. Só uma boa talagada de cachaça para curar a paixão sem freios que tromba nas portas do coração. O gosto repugnante da pinga de engenho rasga a goela do peão que liga o rádio a válvulas. A alma dolorida arrepia ao som da hora do ângelus num programa antigo.

Foi assim e continua do mesmo jeito em muitos lugares no interior do Brasil, onde a viola caipira de Tonico e Tinoco é a alma da gente simples do Brasil. Principalmente no interior de São Paulo, Minas, Paraná e no Centro-Oeste. O Nordeste tem Luiz Gonzaga, o rei do baião; o Sul elevou Teixerinha a um patamar de nostálgica plangência e tragédia.  E a nação, simples, ficou órfã dos três, já que considero o duplo Tonico e Tinoco uma única instituição e, destaco, de purificada simplicidade. 

É... a viola purificou seus versos ingenuamente plangentes. Tão simples como se fosse uma orquestra de pássaros ribombando na mata. Então, vejo que a vida urbana é tumultuada, cruel, desregrada e hipócrita. A alegria e o ânimo para mostrar aos outros que somos felizes e realizados podem trazer em seu ventre a planger do simples. Por que não?  O simples, vestido de plangência, pode nos devolver a alegria do ser. Dá uma vontade de voltar à simplicidade da roça.

Uma casa bucólica com paredes brancas, o arroz e feijão feitos no fogão à lenha, o café num bule esmaltado esquentando na chapa fogão, o pão-de-queijo assado no forno. Uma vaquinha e um curral.

De manhã, ainda na madrugada da roça, o leite com conhaque São João Barra e um pito de palha anima o dia do caboclo. A mulher amada, simples e companheira, para as horas alegres ou plangentes do dia-a-dia.

Ah, quem me dera viver assim. Já ficou muito longe de mim o planger das águas do rio Paranaíba a chicotear as pedras dos barrancos. Hoje, sou um homem da cidade.

Os modos roceiros ficaram apenas na lembrança. A vida urbana me fez escravo e, irremediavelmente, sequestrou a minha alma e a achatou no negro asfalto.

Viver essa vida cosmopolita talvez seja a penalidade por ter deixado a vida simples da roça sem justificar. Quero ser universal. E essa disposição é contrária ao plangente significado do simples e da típica generosidade do sertão. Valeu o devaneio manifesto pelas letras dessa crônica.

O sonho passou. É bom a gente sonhar assim.

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raízestv.net), Escreve aos sábados no DM.

Imagem do google.

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