domingo, 1 de julho de 2012 | By: Doracino Naves

Inventor de histórias

Se você é jornalista, não inventenada. Nadinha. É proibido inventar.  Quem disse isso foi Ricardo Noblat, jornalista pernambucano bem rodado na profissão. Depois de dizer isso, Noblat confessou que,muitas vezes, mentiu para vender jornais.
             
Eu digo: Se você é escritor, invente tudo.Tudinho. É permitido inventar. Mas, deixe aparecer, pelo menos, uma pontinha do fio da lógica. Na literatura, os melhores ficcionistas também contam mentiras. Os grandes clássicos da literatura estão aí para comprovar isso.

No jornalismo e na literatura ofato ou a ideia chegam, quase sempre, inesperados. E a eles vamos incorporando outroselementos até formar o texto que deve ser objetivo e simples. Pois é, aí está agrande dificuldade de quem escreve: fazer um texto simples em que até uma criança alfabetizada possa entender. Tão simples e importante quanto o buritizal no meio do cerrado; oásis das porções de terras espalhadas pelo Brasil Central.

Nas minhas viagens semanais à Piracanjuba, em companhia da amada Clara Dawn, as veredas passam por mim como se fossem estações de trem-de-ferro; mundos de pequenas comunidades plantadas às margens da ferrorvia. Em cada buriti existe um universo biológico. Ao sopé, a água límpida com peixinhos ligeiros, lambaris e traíras bebê desfilam entre as folhagens como se fossem tubarões dos grandes mares. Talvez eles pensem: aqui somos tão importantes quanto as baleias que singram o mar.

No silêncio do ermo do cerrado um pé de buriti pode abrigar milhões de vidas. Desde os minúsculos insetos que transitam pelo caule enrugado da palmeira plantada dentro d’água até a enorme arara azul e amarela granindo nos ouvidos da mata que começa a secar com os ventos da primavera. Um buritizal – a vereda – é um oásis onde viceja o bioma do cerrado. É a Via Láctea desse universo e os buritis, imponentes, são os planetas com vida plena.

Encantador é a sinfonia dos pássaros no alvorecer e no crepúsculo. O mundo em volta da vereda se cala submisso para ouvir. Até os anjos interrompem as suas tarefas e guardam as usas harpas. O pássaro-preto exibido é o solista da orquestra. O mais interessante disso é que o pequeno universo biológico da vereda se movimenta dentro do planeta terra. Flores pequeninas, insetos, aves epeixes convivem bem, cada um no seu papel. Em  um buriti a gente encontra de tudo: orquídeas, ninhos de pássaros. Pequenas lagartas se escondendo bem-te-vi faminto.

Zezinho, menino peralta dosarredores da cidade pensou em construir uma pipa como se fossem seus olhos a voejar sobre o sertão. Além do papel, cola e  linha, ele precisava montar a estrutura do seu brinquedo.Soube que muitos usavam lascas de taboca, mas que o miolo do buriti é mais leve que a taquara. Embaixo de um buriti, com os pés atolados na lama do brejo, viu um galho seco bem no alto, que serviria ao seu propósito. Suas pernas magricelas escalaram o tronco áspero até chegar ao alvo.

Do alto ele viu a sua casa, os seus amigos, os irmãos e o seu cachorrinho Titiu, um vira-latas puro-sangue. Seus pais saíram cedo naquele dia. Imaginou-se um pássaro voando sobre a sua vila; o seu córrego de banhos escondidos; o pé de pequi e a mangueira florida no meio do pasto. Tudo parecia perto e mais bonito. Subiu mais ou pouco até alcançar o galho seco do buriti. Seus pés se apoiaram numa saliência no meio do caminho, a mão esquerda abraçou o tronco com força. Com a mão esquerda puxou forte o galho até soltá-lo. O destino armara a sua tenda no alto do buriti. 

Junto com o galho seco desceu uma cobra jaracuçu que se enrolou na cabeça de Zezinho. Nesse instante o universo de veredas parou atônico com a má sorte de Zezinho. A cobra cravou, certeira, seus dentes afiados nolado esquerdo do pescoço do menino. Ele soltou um grito fino de dor que ecoou no silêncio da manhã. Seu corpo caiu na água fria do brejo.

Acabou na água o  sonho da pipa voando alto. Talvez o espírito de Zezinho esteja adejando sobre o buritizal plantado por Deus nos arredores da cidade.

Talvez um dia eu veja do alto, as terras do meu viver.

Ai de mim enquanto observo a vereda na terra, na sua forma horizontal e aprumada.
                  

Doracino Naves, jornalista;diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raízestv.net) . Escreve aos sábados noDM Revista.              

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