Nas madrugadas calorentas de setembro o mundo é o culpado pelas tristezas do Bairro Popular. Com o tempo amarelo-seco tudo parece perdido. O vento quente entra sorrateiro através do lençol. Meus sonhos e medos se escondem debaixo da cama. Com as surras do mundo nas costas me aprumo na cama. Espreguiço para expulsar a moleza que ronda meu corpo cansado de esperar pela chuva. Quero soltar pipas na clareira do Estádio Olímpico, sob o céu azul dessa primavera que chega marcada com o atraso das chuvas deste ano.
Sentado na cama ouço as tarefas diárias dançando em cima do meu telhado. Sou rei na minha cama. Em prece, estendo as mãos para o alto. Elas puxam meus braços em direção ao sol que se esconde dos meus dedos. Nestes instantes de sonho imagino que posso alcançar o céu com as mãos. Por que os vaga-lumes fugiram deixando somente nuvens escuras sobre a terra? Cansados da pequenez do homem os vaga-lumes fugidios se fizeram estrelas. Ou talvez, em bandos retirantes, foram se juntar ao sol para iluminar o mal da terra. A noite chega calorenta e abafada com a falta de vento.
A lua clareia as rachaduras do muro cinza com nascentes cachos de uvas verdes sendo preparadas para o Natal. Minha casa balança com os meus sonhos. Oh, Quintana! Neste muro tem “Uma única porta. No único muro de uma casa em ruínas. Cuidado... Quem atravessar essa porta, à noite, pode ficar para sempre no Outro Mundo!”.
Expulso a dual mistura de preto e branco que pinta de cinza o meu dia neófito. Ponho o verde no amarelo para criar o azul, lembrando acidentalmente o Césio 137 que afligiu o Bairro Popular em 1987. Agora, quando estamos prestes a completar 23 anos da tragédia do Césio me lembro de todos os relatos dramáticos. Alguns dolorosos, de gente que fugiu daqui com medo. Lembro-me bem da história de uma mulher casada com um vendedor-viajante que, no estourar da bomba de césio, se encontrava em Miracema, Tocantins.
O marido, por telefone, pediu à mulher que não saísse de casa até passar o perigo de contaminação. Que esperasse pela sua volta dali a uma semana. A mulher, com dois filhos pequenos, se aninhou no pequeno quarto de um barracão nos fundos da Rua 57. Presos numa parede branca os cachos de melzinho de são-caetano se abriam em flores amarelas; com sementes vermelho-brilhante para atrair beija-flor.
Chegou o fim de uma semana e o marido não voltou. Preocupada, já não dormia de ansiedade. Lá fora, o roncar das máquinas e dos caminhões mostrava a pressa em levar o lixo radiativo para longe. O vozerio de repórteres e chefes de operários dava a impressão de um campo de guerra; um território minado por bombas radiativas. Passou outros dias e outras noites e ele não voltou. No cochilo das noites mal dormidas ela sonhava com os passos e a voz do amado chegando para salvá-la da prisão.
Cansada de esperar, juntou os filhos e fugiu para a casa dos pais, em Cromínia. Deixou para trás o sonho de Goiânia e “aquele” que nunca mais voltou. Decerto, encantado por um rabo-de-saia qualquer. Mas, ela estava livre dos males da radiação e da espera inútil.
Atrás do muro cinza o tempo se esforça para brotar as uvas nos galhos sobre o muro que insiste em continuar cinza. O mundo é inocente pelos lados no Bairro Popular.
Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)
Sentado na cama ouço as tarefas diárias dançando em cima do meu telhado. Sou rei na minha cama. Em prece, estendo as mãos para o alto. Elas puxam meus braços em direção ao sol que se esconde dos meus dedos. Nestes instantes de sonho imagino que posso alcançar o céu com as mãos. Por que os vaga-lumes fugiram deixando somente nuvens escuras sobre a terra? Cansados da pequenez do homem os vaga-lumes fugidios se fizeram estrelas. Ou talvez, em bandos retirantes, foram se juntar ao sol para iluminar o mal da terra. A noite chega calorenta e abafada com a falta de vento.
A lua clareia as rachaduras do muro cinza com nascentes cachos de uvas verdes sendo preparadas para o Natal. Minha casa balança com os meus sonhos. Oh, Quintana! Neste muro tem “Uma única porta. No único muro de uma casa em ruínas. Cuidado... Quem atravessar essa porta, à noite, pode ficar para sempre no Outro Mundo!”.
Expulso a dual mistura de preto e branco que pinta de cinza o meu dia neófito. Ponho o verde no amarelo para criar o azul, lembrando acidentalmente o Césio 137 que afligiu o Bairro Popular em 1987. Agora, quando estamos prestes a completar 23 anos da tragédia do Césio me lembro de todos os relatos dramáticos. Alguns dolorosos, de gente que fugiu daqui com medo. Lembro-me bem da história de uma mulher casada com um vendedor-viajante que, no estourar da bomba de césio, se encontrava em Miracema, Tocantins.
O marido, por telefone, pediu à mulher que não saísse de casa até passar o perigo de contaminação. Que esperasse pela sua volta dali a uma semana. A mulher, com dois filhos pequenos, se aninhou no pequeno quarto de um barracão nos fundos da Rua 57. Presos numa parede branca os cachos de melzinho de são-caetano se abriam em flores amarelas; com sementes vermelho-brilhante para atrair beija-flor.
Chegou o fim de uma semana e o marido não voltou. Preocupada, já não dormia de ansiedade. Lá fora, o roncar das máquinas e dos caminhões mostrava a pressa em levar o lixo radiativo para longe. O vozerio de repórteres e chefes de operários dava a impressão de um campo de guerra; um território minado por bombas radiativas. Passou outros dias e outras noites e ele não voltou. No cochilo das noites mal dormidas ela sonhava com os passos e a voz do amado chegando para salvá-la da prisão.
Cansada de esperar, juntou os filhos e fugiu para a casa dos pais, em Cromínia. Deixou para trás o sonho de Goiânia e “aquele” que nunca mais voltou. Decerto, encantado por um rabo-de-saia qualquer. Mas, ela estava livre dos males da radiação e da espera inútil.
Atrás do muro cinza o tempo se esforça para brotar as uvas nos galhos sobre o muro que insiste em continuar cinza. O mundo é inocente pelos lados no Bairro Popular.
Doracino Naves é jornalista, diretor-apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)
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