Bem cedo Quintino já estava debaixo do pé de manga coração-de-boi. Na sua mão um canivete de folha larga afiada na pedra de amolar tirada do córrego Botafogo. Pensava: “hoje, passarinho nenhum vai meter o bico na minha manga”. Estava vistosa. Solitária, no galho mais alto, se tingiu de dourado. Manga coração-de-boi que se preza tem cor amarela, vermelha ou laranja. E sem fibras para ser chupada até o caroço. Deu água na boca de Quirino. Só de pensar na doçura da manga ardeu-lhe a caxumba. Viu o alto da mangueira.
Uma copa enorme projetava sombras no quintal vizinho separado por muros de taipa. Embaixo, as folhas formavam um tapete folhado e úmido. Pendurado no pescoço um estilingue feito de borracha de pneus de bicicleta, couro de botina velha e forquilha de amora escolhida a dedo. Levava no bolso bolinhas de vidro para melhor precisão. Despescoçou o estilingue, pôs uma bolinha no couro da atiradeira.
Forquilha para cima, borracha esticada, arremesso calculado. Pontaria certeira. Bem no talo. A manga rodou no ar e caiu levando tudo que estava embaixo. O som de manga derrubando folhas era peculiar, simbólico da vida de moleque. A bola perdida caiu, como a folha-seca do meia Didi, justo no telhado da penitenciária de Goiânia, no Bairro Popular. Sem danos. Os ruídos da manga despencando das grimpas, o quicar da bolinha nas telhas, soavam como música aos ouvidos de Quintino.
Veio com a família para Goiânia num caminhão pau-de-arara fretado na Bahia. Morava na Rua 79, aonde a maioria viera do nordeste. Seu pai, Raimundo, pedreiro em Correntina, trabalhava na construção do Centro Administrativo. Brigou no serviço por causa de marmita. No dia seguinte o outro foi encontrado morto com um furo no peito. Como era o principal acusado, foi preso incomunicável; a família desamparada.
Sua mãe, lavadeira. Tinha três irmãos mais novos. Mas, faltava o de comer. Ela saía à noite e, às vezes, chegava tarde. Bom que no outro dia havia dinheiro para o pão. Assim, esperavam o pai sair da cadeia. Não conheço nenhuma história de manga caída que demorasse tanto a chegar.
A manga, em queda livre, bateu numa caixa de marimbondo-cavalo. Um deles, num vôo rasante, meteu o ferrão na sua orelha. Ardeu igual às tapas do Tião, moleque mais velho da Rua 68. Ouviu um baque fofo de manga caída sobre as folhas. E um grande furo de passarinho na fruta que amadureceu com o seu olhar. Só podia ser coisa de bem-te-vi. Num galho próximo um bem-te-vi parecia zombar do seu destino. O estilingue já estava pronto para atirar.
Mirou firme que era bom de tiro. A bolinha bateu no peito amarelo que caiu ao lado da manga coração-de-boi. Suas perninhas, viradas para o céu, tremeram de morte.
O menino, a manga, o chão, o pássaro. Um soluço sacode os ombros magros, sem camisa, de Quintino.
Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net)
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