quarta-feira, 3 de maio de 2017 | By: Clara Dawn

Doracino Naves, o romanceiro de Goiânia

Doracino Naves dos Santos nasceu em Araguari, Minas Gerais em 17 de janeiro de 1949. Foi jornalista, empresário e escritor brasileiro. Fez Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) com o trabalho “A Imprensa em Goiás”. Foi o diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural – onde fez, por 10 anos, entrevistas com artistas e escritores, inicialmente na Fonte TV e depois na PUC-TV (TV Aparecida). Publicou crônicas semanais no caderno DMRevista, do jornal Diário da Manhã. Foi um torcedor apaixonado pelo Vila Nova Esporte Clube, de Goiás. Foi muito admirado pelo seu jeito sério com a profissão de jornalista e por sua luta em prol dos artistas goianos. Suas crônicas revelavam uma prosa poética, contextualizando, muitas vezes, temas como reminiscências da infância em Porto Barreiros, Araguari e Palmelo; o amor por Goiânia e pela cultura integral; metáforas sobre a morte e dialéticas do existir. Criou o Simão Sem Caráter, um personagem amoral, cômico e, apesar da falha na personalidade, um ser humano “bom” por não ser “mau” e vice-versa.

Infância e juventude

Em 1954, com cinco anos, sua família se mudou para Palmelo, Goiás, onde viveu até os dez anos. Seu pai, José Naves Martins, e o tio Ezequiel Naves de Almeida foram donos de cartório. Morou durante seis meses em Aragoiânia, no entorno da capital goiana, onde seu pai, Zequinha Naves, foi coletor estadual. Mudou-se para Goiânia em 1960. Em 1970 casou-se com Cleusa Cleonice de Castro, tendo com ela três filhos: Marcus Aurélio, Márcia Fernanda e Soraya. Em 1989 nasce sua filha Karolline. De 1966 a 1992 foi dono de escritório de contabilidade.

Maçonaria

Em 1974, na Maçonaria Glória do Ocidente do Brasil: ocupou vários cargos nessa instituição, inclusive o de Grão-Mestre Estadual, no período de 1978 a 1989, no qual foi construído o Palácio Maçônico do Jardim América. Defensor incansável da maçonaria cristã. Quando defendeu a maçonaria teísta contrariou interesses da maçonaria deísta e agnóstica.

Jornalismo

Carreira Jornalista tardia, pois iniciou na profissão aos 51 anos, dedicou-se ao jornalismo especializado em cultura. Sua carreira começou na revista Automóveis&Cia., ascendendo ao cargo de editor. No último período do curso de jornalismo na PUC Goiás, em 2007, estreou na tevê com o programa veiculado ao canal 5 – Fonte TV. Permaneceu nesse canal com mais de 300 edições voltadas ao público que aprecia as artes e a literatura. Em 10 anos da existência do Programa Raízes Jornalismo Cultural, Doracino Naves realizou mais de 500 entrevistas com artistas goianos. Teve as parcerias dos escritores Francisco Perna Filho, Edival Lourenço, Carlos Willian e Adalberto de Queiroz como entrevistadores convidados.

Política

Na eleição de 1989, foi eleito – com o apoio do então Secretário da Cultura do Estado de Goiás, Kleber Adorno – primeiro suplente de vereador em Goiânia. Assumiu o mandato até o final do período em 1992, sendo o autor da Lei que criou o Festival de Cinema de Goiânia e o Festival de Outono, com diversas atividades culturais em várias partes da capital. Também é de sua autoria a Lei que incluiria obras de artes (pinturas e esculturas) nas construções civis com mais de mil metros quadrados. Este projeto foi aprovado pela Câmara Municipal de Goiânia, com parecer favorável do Instituto dos Arquitetos do Brasil. O então prefeito, Nion Albernaz, vetou o projeto por força do lobby das imobiliárias goianienses. Em 1994, em lista de indicação liderada pelo Secretário da Cultura Geraldo Coelho Vaz e outros artistas e escritores, foi nomeado, pelo governador Iris Rezende, presidente da Funpel – Fundação Cultural Pedro Ludovico, correspondente à Secretaria de Cultura estadual. Em 2008, novamente em uma gestão de Iris Rezende, dessa vez prefeito, foi Secretário de Cultura de Goiânia.

Prêmios

  • Diploma – Troféu Tiokô – Conferido pela União Brasileira de Escritores de Goiás em 2009.
  • Honra ao Mérito – Conferido pela Câmara Municipal de Goiânia em 2012.

Novos caminhos

  • Em 2011, devido a um Acidente Vascular Cerebral causado pelo estresse, pediu afastamento das lides maçônicas e se afastou da também da política.
  • Em 2012, passou a se dedicar aos negócios da família – uma rede de serviços cartorários – trabalho que alternava com as gravações do programa Raízes Jornalismo Cultural.
  • Em 2013, casou-se com a romancista goiana Clara Dawn.
  • Em 2015, afastou-se dos trabalhos burocráticos da franqueadora e passou a se dedicar exclusivamente ao programa de entrevistas na tevê. E nesse ano também lançou a revista impressa e o portal na internet, ambos com a marca Raízes Jornalismo Cultural.
  • Em 2016, ele e Clara Dawn passaram a se dedicar a um projeto de restauração de nascentes no município de Piracanjuba, Goiás, e o reflorestamento no Sítio Vale das Quimeras, em Piracanjuba. Em um ano, replantaram mais de 2 mil mudas de árvores do Cerrado.

Morte

Doracino Naves dos Santos morreu no dia 27 fevereiro de 2017, em decorrência de uma hemorragia após uma cirurgia de Whipple, para extrair um câncer no pâncreas.

Acervo

“E ELE TINHA MAIS LIVROS NA INSTANTE, DO QUE ZEGNA NO ARMÁRIO, ENTÃO EU ME CASEI COM ELE, E NEM A MORTE NOS SEPAROU”.
CLARA DAWN 
quarta-feira, 27 de janeiro de 2016 | By: Clara Dawn

Confissões de um Sub-70 acerca do Novo Acordo Ortográfico


Chego ao sub-70 com vontade em entrar para o time dos velhos.  Minha energia se renova quando tenho que aprender algo. Por dever de ofício volto às aulas de português. O Acordo Ortográfico agora é para valer, dizem os especialistas. As dúvidas começam assim: com hífen, sem hífen; o trema que foi embora com olhinhos de abandonado; o acento da ideia que voou nas asas de Ícaro. Mas o meu computador, esse chato de galocha, insiste em corrigir as palavras que digito neste teclado burro. A teimosa feiura da tecla tira o traço vertical que se escorava nas costas de Sauipe. Meus leitores mais atentos, em sinal de respeito à língua portuguesa, leem este texto sem chapéu.

Dá fome quando tenho que falar sobre um assunto assim. Levanto-me para esquentar o pão, arqui-inimigo da dieta, no micro-ondas pré-histórico. Minutos depois sai do forno um mísero minissanduíche, para não contrariar Clara - escritora, mulher do meu coração e dona de casa. Pois sim, o pão é composto de carboidratos que, no organismo, se transformam em doce.  Em nossa casa, o café da manhã contém pouco açúcar; sem o tradicional pé de moleque que Vó Sinhá me acostumara na infância. Por adorar doce ela me chamava de Doçarino. O dia a dia não para de despejar mais outros aos muitos que já passei na terra do meu amado Deus. E esse dia, após outro e mais outros,desce sem paraquedas até se derreter na terra.

Pelo andar da carruagem enferrujada do corpo os anos depois dos cinquenta somam um ano no calendário e encrespa cinco no pele enrugada como se fosse  jenipapo maduro na gaveta. Resumo dessa matemática terrível: passa um e envelheço mais de cinco anos. Não há remédio que dê jeito nisso. O míssil antiaéreo do tempo é incapaz de deter a queda inevitável do corpo que cai desde a idade bacana dos trinta.  Outro dia disse ao meu neto que no passado fui jovem. Ele riu, talvez a duvidar deste jeitão vai célere aos setenta.   

 Creio que a vida é uma bola de fogo com a esmagadora força da gravidade; arqui-inimiga da velhice. E o homem que nem pirulito enrolado no palito viaja em circum-navegação eterna para escapar do inferno das tentações que vêm pela boca. O anjo do Senhor, que nos guarda dia e noite, convida cada um de nós à morada celestial e ali despetala a flor do bem-me-quer orvalhada com água-de-coco tirada de uma palmeira super-resistente do Céu. Pois é, essa regra do hífen é cruciante, mas sei que a água do coco refresca meu corpo extenuado pela corrida no Parque Areião. 

Ninguém é perfeito, por isso o ser humano é o anteprojeto da admirável perfeição de Deus. Meu voo de estreia no Céu, caso seja merecedor do paraíso, aguçam os sentidos e os olhos do espírito veem a Luz Eterna a brilhar na sequência dos séculos.    

Caso o corpo do espírito (parece estranho, mas uso a liberdade poética) tenha pelo, na certeza se encrespará com o impacto multicolorido do Cosmo, de onde brota a energia vital do planeta.  Ninguém chega à velhice impunemente. Penso que a minha cruz seja, na chatice da eras, falar da reminiscência chata e enfadonha em que as lembranças fazem companhia à solidão.

Escrevo com os dedos a digitar a leveza do alfabeto na minha impressão de hoje. Mas inseri algumas palavras mudadas pelo Acordo; talvez sejam reeditadas. Por isso a formiga-cabeçuda corta o raminho do espontâneo e do ingênuo. Mantenho-me fiel às regras escritas pelos mandachuvas da língua portuguesa. Para quem escreve, a língua pátria deve ser autossuficiente e mandona. Obedeço todas as regras. Por isso chego ao time dos sexagenários com os olhos de sub-70. Então, que outros anos calmos venham até chegar ao limite extremo das horas.

(Publicado originalmente com o título "Cartografia das horas" no jornal Diário da Manhã - DM Revista em janeiro de 2016)


                                                                                   Doracino Naves, jornalista.
terça-feira, 8 de setembro de 2015 | By: Clara Dawn

Poeira da estrada nas árvores

   
A paisagem da minha alma de noite é a mesma de dia; basta virar do avesso.  Se eu morrer amanhã, seu doutor, com o espírito virado, ou não, chego rapidinho ao céu. Este intertexto com Fernando Pessoa e Zé Kéti foi proposital. Talvez seja um jeito de afastar de mim o enfastio de setembro no cerrado. O drama do cerrado é antigo. Mas nenhuma árvore desiste; espera, resignada, que a chuva caia logo na terra seca. Eu também não desisto até que chova.

    Enquanto isso o carro de bois levanta o pó da estrada. O canto fino, chorado, repercute longe, como se fosse o zumbido de mosca-varejeira no silêncio do sertão.  Ao passar pela grota do córrego o carro de bois engrossa a voz ao som de um baixão. O refluxo dos bois de guia faz a junta do cabeçalho refluxar; o carro quase para. Cresci ouvindo o carro de bois carregado de milho e a boiada atravessando as ruas da cidade num cortejo lento até passar em volta do cemitério.

      Houve época em que desejei ser enterrado em Porto dos Barreiros, sertão de Minas Gerais, onde nasci. Mas, quá! meu Porto dos Barreiros está inundado por uma represa insensível que apagou as trilhas tatuadas na terra vermelha. Mesmo assim dedico esta crônica ao verme que primeiro roer minhas carnes mortas. Ora bolas, fiz mais uma travessura com o texto original de Machado de Assis. Na verdade, o mundo é uma intertextualidade gritante desde as eras ancestrais. Homero escreveu Ilíada e Odisséia com as fagulhas do que estava escrito nos céus.

      Olho para cima, chover que é bom, necas! E a secura do ar confunde minhas ideias. O sol na moleira transforma o que é natural em sobrenatural.  Vejo-me rodeado por almas penadas, daquelas que habitam as ruínas do meu tempo.  Milhares delas estão sem rumo por causa do sol aceso no céu sem nuvem. Algumas se escondem numa tapera à beira da estrada, outras no descampado cutucam um tamanduá bandeira que corre com passos trôpegos. Na mata fechada Saci sopra seu cachimbo. Um assovio vindo da copa de uma paineira avisa os animais sobre o perigo iminente de uma onça faminta. Um copo de água fresca do pote afasta minha cabeça do delírio.

        As obras literárias clássicas foram escritas sob o domínio do drama ilusório; sofrimento, medo e aflição é o prato principal de uma obra literária; o ambiente, a sobremesa.    

        Antes da chuva, o pó da estrada se assenta nas árvores qual picumã grudado nas folhas. Talvez nem sejam árvores; pedaço de poeira em forma de desenho assimétrico é o que vejo. 
        Ou então é um fantasma na estrada a reter a poeira dos espíritos que passam pelo universo, de dia ou de noite.  

        Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural,www.raízesjornalismocultural.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00.
       
terça-feira, 4 de agosto de 2015 | By: Unknown

Do lado direito do sol

         Criança é a poesia ligada numa tomada com duzentos e vinte anjos. Poeta se imagina criança conectada com o universo das imagens.  A epifania desta crônica revela a sobrenatural tentativa de fugir do supérfluo mundo das aparências. Gosto de jogar as palavras no papel com o pensamento lúdico de viajar para o lado direito do sol.  Esse o jeito que encontro para enfrentar a vida; pode ser mais uma tentativa de enrolar a morte inexorável com a agradável fantasia dos sentidos.
          Rubem Alves, disse que “cada velho tem, dentro de si, uma criança que deseja brincar”. Então, quando eu morrer, quero nascer de novo criança, carregar água na peneira, à imagem de Manoel de Barros. Essa ideia de que o sol tem lado é do Menino do Mato, “ele me disse que do lado esquerdo do sol voam mais andorinhas do que os outros pássaros”. Não sei a resposta certa a essa questão, mas a precisão poética está no poema Joaquim Sapé.
           Transformar imagens em palavras é ofício de escritor. Gabriel Nascente, o menino com franjas de doce das laranjeiras, é poeta de tempo integral “tatuando borboletas no dorso dos horizontes”. O universo é a macro poesia do Criador; o verbo, síntese transcendental, é o microcosmo do poeta; adivinho dos afetos, da morte e das paixões. Isso mesmo; poetar é fecundar a aridez desértica da existência.   
           Ele vive, à exaustão, a dor metamórfica. E ainda se faz castiço para interpretar a vontade de Deus que sempre tem algo a nos dizer.  Assim como é a criança que conhece a alma dos adultos, sabe tudo; do começo ao fim. Para Gilberto Mendonça Teles “O fim do mundo começa no fundo meu quintal, nas sombras daquele muro de taipa que se eleva até as nuvens e me obriga a imaginar o que está do outro lado, nos limites ou no sem-fim da forma inatingível – essa que o azul do tempo borda ou disfarça no invisível das folhas da mangueira”.
           Pois é. Preste atenção em quem escreve ficção. Se ele não se tornar menino o texto fica gago. Ariano Suassuna, menino-moleque do sertão nordestino, vestia a roupa da travessura para contar seus causos. Chicó, seu personagem em O Auto da Compadecida, era um doido menino que contava mentiras. Numa de suas entrevistas Suassuna disse ter “simpatia por mentiroso e doido. Como sou do ramo, identifico mentiroso logo."
           Todo escritor é um mentiroso que finge dor ou alegria; ou os dois juntos. Geraldinho foi um mentiroso alegre que Hamilton Carneiro conheceu em Bela Vista. A história da bicicleta é mentira. Nilton Pinto, outro mentiroso incorrigível, tem a pureza lírica da gente da roça. E sabem por que a dupla com Tom Carvalho dá certo? Porque, agora, são dois mentirosos. No bom sentido, claro.
           Gente estou esquecendo o tema de hoje: crianças.  
           Elas não podem viver bem sem a poesia que alumia os caminhos escuros da alma. Menos notícia, mais poesia!
           Nada melhor para explicar um pensamento tosco, como é o deste cronista, do que recorrer a Carlos Drummond de Andrade. “A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem”.
           Penso que o poeta, igual aos meninos, vivem a colorir pássaros, qual berloques de dançarina espanhola.
           Criança é poesia, ainda que o Poeta não a houvesse criado.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM- Revista - Goiânia - Goiás em 01 de agosto de 2015)
terça-feira, 14 de julho de 2015 | By: Unknown

Marcado para morrer


       Assisto na televisão as cenas do documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.  Viajo de volta ao tempo em que andava de trem entre Araguari a Goiânia. Em uma das cenas do filme, um grupo de crianças desce do trem junto com mãe camponesa com uma trouxa de roupas nas costas; tipo retirante.  Atrás, ia o pai com uma surrada mala de couro cru. O filme, pensado inicialmente, para mostrar a luta no campo, narra também o assassinato de João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé, interior da Paraíba.

       Aquela passagem de crianças, ainda de calças curtas, em fila, saltando as escadas do vagão, lembra a mesma em que eu descia, antes de todos, na estação ferroviária para contar, de um a sete, meus irmãos menores. Tinha medo de que um deles pudesse se perder no meio da multidão de viajores apressados.

        Meu pai começara a vida trabalhando como lavrador em Porto dos Barreiros, Minas Gerais. Até meados do século passado havia muita pobreza no campo, daí começou a migração para os grandes centros urbanos. Sou pedaço dessa história cigana que fugiu da “precisão” para dias melhores. Tenho um pé na roça e minhas raízes continuam fincando ao pé de um mourão, hoje submerso pelas águas do Rio Paranaíba, com meu nome desenhado a canivete por meu pai.  

        Pois é, Porto dos Barreiros, a minha Atlântida Perdida, está coberta pela represa de uma hidrelétrica. A cidade mudou de lugar e minha alma vaga por terras que jamais sonhara visitar. Por essa causa - penso que as recordações da infância afligem a vida de todo mundo -  uma cena ou uma palavra puxa a lembrança de algo que se foi.  Noutro dia, Tio Galdino, o pai do filho do homem, se lembrou da época em que eu, já morando em Goiânia, passava as férias escolares em Porto dos Barreiros; chegava sempre com uma capanga de objetos pessoais nas mãos. Aí, comparando os períodos, percebi a diferença daquele tempo. Dá dó a pureza dos meninos da minha geração.

        Nem uma mala para levar as pobres roupas. Não me importava a simplicidade em que vivia. Ao contrário, era feliz e alegre; ingênuo e bobão, da mesma forma que sou hoje; o bobão da Lorinda que acredita em todos. Deixa essa conversa para outra hora. 
        O documentário feito pela equipe da UNE Volante é um retrato irretocável das lutas sociais dos pobres explorados, à última gota de suor, pelos ricos. Os governos passam e tudo continua igual. O número de pessoas pobres aumenta na mesma proporção que o dos ricos. A vida puxa uns para cima da arrogância e outros abaixo da linha da dignidade. E o pião da existência continua girando.
    
        Nesta manhã de sexta-feira, ainda com o ar fresco da frente fria que invadira Goiânia no meio da semana, uma mulher pequena e magra, vestes maltrapilhas, varre a calçada da Caixa Econômica Federal, próxima à Praça Tamandaré, Setor Oeste.

        Logo percebo que não é uma gari da prefeitura.
        
         - Bom dia. Falei resoluto.
     
         Ela não respondeu; sequer olhou para mim.

        “Parece doida”, falei com meus botões.

         Lembrei-me de Cachoeira, a doida de Palmelo que usava roupas encardidas e exalava cheiro de alho mascado. Cachoeira falava com espíritos; discutia calorosamente com as vozes do além. Eu não acredito em espíritos falantes, mas confio na santa doidice dos doidos.

          Também creio no zunzunzum cósmico de que estou marcado para morrer.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 11 de julho de 2015)          

Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, wwwraizesjornalismocultural.net, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 23h00. Escreve aos sábados no DM Revista.
segunda-feira, 18 de maio de 2015 | By: Clara Dawn

No campo tem curriola



                        
 “Periquito tá roendo o coco da guariroba/Chuvinha de novembro amadurece a gabiroba”. Esse é o começo da trilha sonora mais conhecida de Goiás. Nossas manhãs de sábado perdeu, pela retirada do programa Frutos da Terra do ar, o cheiro e o gosto das frutas do cerrado. Esses sentidos eram despertos pelos acordes e os dois primeiros versos da música do mesmo nome do programa semanal; última cantada de João Caetano na TV Anhanguera. Fernando Perillo, primeiro a gravá-la, Genésio Tocantins, vocal do Musika, Marcelo Barra e Pádua também cantaram o hino do programa.
                         
A cultura popular sente a perda irreparável do programa mais goiano da história da televisão. Frutos da Terra continua na nossa imaginação. Mas Goiás perdeu a mais importante trincheira de resistência cultural para a enxurrada da aculturação globalizada. Imagino que um programador da Rede Globo decretara: a televisão regional que se dane!
                         
Os olhos e ouvidos da maioria expressiva no estado - a que mora no interior ou os filhos e netos que vivem em Goiânia - conservou seus hábitos nas manhãs comandadas pelo mestre Hamilton Carneiro. Quem veio de fora também foi tocado pelas nossas tradições e a simplicidade arrebatadora de Hamilton Carneiro.  Ele teve a companhia de um timaço: Carmo Bernardes, Bariani Ortencio, músicos e contadores de causos; Geraldinho, Nilton Pinto, Tom Carvalho e Ostecrino Lacerda. A tradição goiana ganhou, na força daTV, a magia da roça expressa no jeito goiano de viver. “E não tem nada mais doce que araçá dessa terra”.
                       
Ainda ecoa no sertão do Brasil Central a música  composta por Genésio Tocantins e Hamilton Carneiro para abrir o programa mais longevo da televisão goiana. 32 anos e 1403 programas feitos com o olhar criterioso do apresentador. Um acervo e tanto, não é, Hamilton?  Nesse brejo tem ingá.

Pois é. Frutos da Terra tem as mais belas imagens do povo de Goiás, retiradas da sensibilidade de ouvir e perceber o outro. Hamilton faz o cruzamento de frutas do cerrado com passarinhos para obter gorjeios e canções; olhar seráfico na escolha de seus convidados. Mágica do poeta Manoel de Barros, o menino do mato que fazia parte da natureza; imaginou uma formiga ajoelhada na pedra. A canção de Hamilton é a metáfora maravilhosa  da fartura do cerrado.

A TV Anhanguera subtraiu do telespectador o direito de acesso às nossas raízes; Frutos da Terra foi para a guilhotina. Talvez seja a hora de os movimentos populares irem para a rua pedindo mais cultura. Por que não? Cultura também é um direito do cidadão.

Noutro dia, em Piracanjuba, Maria, uma mulher comum, do povo, se dizia triste por causa do fim Frutos da Terra.

- Coitado do Hamilton, ouvi falar que ele está muito doente. Eu oro por ele com um galho de arruda pedindo a Deus para lhe repor as virtudes do corpo.
                     
Respondi:

- Hamilton está bem de saúde; firme no trabalho da sua agência de publicidade. Continue orando, pois todos precisam de prece.
                      
Mestre Hamilton, fazemos um pedido: volta com o programa Frutos da Terra, mesmo que seja em outra emissora. Os artistas, sem você a divulgá-los, perderão shows e a oportunidade de mostrar a força de uma cultura rica e diversificada.
                   
O público, excluído das decisões, perde mais. Certamente que uma pesquisa feita em todo o estado de Goiás mostraria a grande audiência do seu programa. Talvez outra emissora já tenha percebido a falta que você faz com o seu Frutos da Terra.
                  
Aí o rumo das coisas pode ser diferente.
                   
“Tem uns pés de marmelada depois que passa a pinguela...”.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Sábado, 16/05/2015 - em Goiânia - Goiás)