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Goiânia nasceu assim: luminosa, bela, culta, definitiva. São várias cidades numa só. Abro as cortinas dos meus olhos para ver a cidade escondida pelos prédios e a pressa insana das pessoas em suas tarefas cotidianas. Quem a vê e fecha os olhos à sua alma é como se ela – a cidade - deixasse de existir. Ficam só a luz, o calor e as imagens. Depois de abrir os olhos a cidade volta, atraindo a nossa atenção. Assim é o mundo das imagens, irresistível.
O que é a essência de Goiânia? O que vemos ou o que imaginamos ver? Sei lá é o que sei. Peço misericórdia pelo que não sei. Não digo de outras pessoas que, lá no íntimo, se julgam suficientes ao mundo. Falo de mim, insignificante, que o universo vê apenas como um pontinho a mais na imensidão do cosmo. Uma coisa me conforta na minha insignificância: Goiânia é parte de um todo indispensável para a composição poética do mundo. Eu, igual a você, leitor, somos parte de uma cidade que foi batizada pelo sol de um movimento cultural iniciado por Pedro Ludovico, em 5 de julho de 1942.
Talvez tenha sido neste dia que Deus sacudiu o seu cobertor de estrelas e elas caíram céu abaixo em matizes variegadas; no estilo Art-Decor ou na fantasia de seus artistas ou, ainda, na esperança da sua gente que voa com asas de borboletas sobre a cidade. Percebo isso ao andar com olhos atentos de girassol. Quando a gente olha assim, para a direita, à esquerda, atrás, percebe coisas que antes não via. Sinto-me renascido a cada saída e entrada na alma da cidade.
Nessa manhã de sexta-feira o ar frio sacode meus cabelos e abana o espaço. Ao passar pela Leste-Oeste, no Setor Norte Ferroviário, lembro-me da última favela de Goiânia: o Morro do Aranha. Suas casas ficavam penduradas no aterro do antigo leito da estrada de ferro.
Lá também morava um catador de lixo por apelido Baixinho. Assim todos o chamavam. Viera de Ituiutaba, em Minas Gerais. Tinha uma mulher doente que mal dava conta da lida da casa; morava com eles um casal de filhos. O menor, magricela e alegre, andava pendurado na carrocinha, misturado ao lixo. Seu pai, às vezes, parava num bar do Bairro Popular, tomava uma pinga e seguia em frente. Essa era a sua rotina diária.
Na chuva cobria com plástico os papéis e o menino quase sempre vestido só com um calção surrado. Nem a dificuldade deixava o Baixinho de mau humor. Tinha um jeito amigo de olhar: enxergava as pessoas, reparava as ruas, os jardins e as flores nas janelas das casas do Bairro Popular. Preso pela cidade, mas livre para andar pelas calçadas e becos do bairro de onde tirava o sustento da família.
Dona Joana, moradora do bairro, com ar maternal, advertia:
-Baixinho, vista uma camisa nesse menino. Ele pode pegar uma pneumonia vestido assim.
-Liga não, dona Joana, ele é forte.
O filho do Baixinho tinha uma mania: colecionar papéis de balinha que ele, cuidadosamente, retirava do lixo. Desamassava-os e os guardava entre as folhas dum livrão achado no lixo.
Numa dessas viagens deu-lhe sono como em qualquer outra criança. Já era noite. Chovia. A chuva chegou gelada, caiu nas grades da carrocinha e escorreu embaixo dos papéis. Seu pai, arrastando a carrocinha pelas ruas do bairro, tinha um objetivo: alcançar o Bar do Moisés, na Rua 74.
Baixinho para a carrocinha no bar, pede uma pinga, duas... a terceira para espantar o frio. Lá fora, a carrocinha espera, sem pressa. Um freguês do bar entra apressado, fechando o guarda-chuva molhado.
- Êta, chuva! É uma frente fria que vem vindo do sul.
- Oi, Baixinho, cadê o menino?
-Vixe, “esqueci ele” na carrocinha.
Todos saíram para buscar o menino que colecionava papéis de balinha. Reviraram os papéis encharcados. A chuva derramava forte, enegrecendo o caminho até ao menino. No meio do lixo um corpo frio, magricela, sem camisa. Com um papel de balinha da Xuxa na mão. Baixinho se ajoelhou no piso da carrocinha e segurou o corpo inerte do filho. Chorou. Suas lágrimas, salgadas, se misturaram às da chuva.
Uma luz acende na janela, no alto de um edifício.
Goiânia é assim, paradoxal como em todas as metrópoles, guardam sonhos, luz, vida e morte. Definitivos.
Esta crônica acaba em silêncio.
Doracino Naves é jornalista. Diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.raizestv.net).
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