Rasgo a memória em busca das imagens guardadas entre os meus papéis. As anotações revelam histórias passadas; não só da minha vida, mas também de outras pessoas ou um acontecimento. Aqui vai uma crônica para celebrar a arte do diálogo e ver a lógica do argumento contrário com bom humor. E aceitá-lo sem evasiva. O armazém do Seu Juca estava instalado num prédio estilo americano, na Vila Nova.
Naquela venda não havia preço em coisa alguma. Ali se vendia de tudo: alimentos, ferragens, tecidos, material de construção, chapéus, instrumentos musicais, bijuterias e aviamentos. Era um pegue-pague; tudo ao alcance das mãos. Com uma diferença fundamental: não havia registro do preço de venda. Só havia um código com o custo dos produtos. Mais tarde descobri que cada letra da palavra ‘pernambuco’ correspondia a um número de zero a dez. Assim sete era ‘b’. Setenta, portanto, estava escrito com duas letras, b mais o, igual 'bo'. Sem trocadilho.
A maioria das vendas era feita fiado.
- Seu Juca, anota na caderneta. Um par de botinas!
Ele anotava o produto sem o preço de venda que era para poder negociar depois. O freguês aceitava as regras da casa; tudo era feito na base da confiança. Fazia parte de um jogo de barganha. No bom estilo de negociar do povo abrâmico. Ele dizia:
- É fundamental conversar e convencer o outro da nossa razão. Não tenho preços fixos. Tudo pode mudar com uma boa conversa. Se o freguês me convencer da necessidade leva até de graça.
Ele dizia que havia falta de diálogo no mundo. E a negociação nos preços era um bom motivo de argumentos com mão e contramão. Zequinha, um baiano de Ilhéus queria comprar um violão para o seu filho.
- Só pago 40 cruzeiros.
-Não, senhor, é 80 e não se fala mais nisso.
-Seu Juca, meu sonho é comprar um violão para o meu filho. Mas só tenho 40 cruzeiros. Se não quiser o preço que posso pagar não compro nem fiado.
Seu Juca pensou antes de perder a venda.
- Vai, leva o violão para o garoto!
Aceitou ganhar pouco naquele produto; menos perder o freguês. Perdia numa mercadoria e ganhava na outra. Cada objeto tinha um preço, dependendo da situação, do comprador e do momento da venda. Assim, seu comércio prosperou. Mas, de vez em quando alguém saía sem comprar nada. Ele perdia o humor quando isso acontecia. Num desses dias entrou na cozinha bravo.
A mulher de Juca passava boa parte do seu tempo cuidando de animais doentes que recolhia na rua. Na cozinha, encontrou a mulher cuidando de duas gatinhas recém-nascidas deixadas na porta do armazém. Perdeu a paciência:
-Quero que você se livre já dessas...
-Delicadamente a mulher disse:
Calma, querido. Não fale bobagens na frente das gatinhas, elas ainda são crianças.
Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV (http://www.raizestv.net/)
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