Não há nenhuma
nuvem acima dos prédios do centro de Goiânia. O céu está limpo nessa madrugada.
É mês de setembro, cinco horas da manhã. O barulho das turbinas do avião
subindo invade o meu sono. Depois que ele passa ouço o canto demorado de
um galo. Custo a acreditar nos meus ouvidos porque não mais existem galos por
aqui que a falta de quintais não deixa. Esfrego os olhos para acordar. Na
sacada, espremido na pequenez do lugar, entre o varal de roupas e a parede
baixa, aparece Simão, o Sem Caráter. Seu corpo etéreo balança com o vento
chiando entre as peças de roupas e o lençol branco estendido no espectro da
madrugada. Dá um calafrio, rápido talvez provocado pelo ar fresco que sopra a
pedir mais zelo desse escriba a Simão.
De
vez em quando ele volta da sua recôndita morada para me seduzir a escrever
coisas do seu agrado. Pergunta-me se escutei o canto do galo. Faço-me de
desentendido. Ele recomeça a sua conversa mole. Simão é sempre assim: antes de
eu responder ele emenda as suas pataquadas. Comprara o galo numa loja de aves
da Avenida Castelo Branco, em Campinas. O nome do galo é Conrado. Jura que é um
galo cantor; canta dois minutos sem parar. É grande, bonito; todo branco,
bico fino, afiadíssimo. E para me agradar diz que a cauda dele é toda
vermelha, da cor do Vila Nova.
Havia um tom de ironia em suas palavras; imagino que se refere à posição
rabeira do meu time fora de série. Simão garante que comprara o galo também
para alertar aos moradores do Centro que o dia deveria ser de vigília quanto às
hipocrisias e injustiças. E completou esperançoso: - Ele vai fazer nossos
vizinhos se lembrarem da vida rural. O galo canta alto para avisar às galinhas
que o chefe está vivo e no comando do terreiro. Simão se tornara uma galófilo
irritante.
Percebendo
minha impaciência a ouvir essa história de galo musical, Simão desapareceu
entre os prédios da Rua 20. Um cheiro suave de rosas foi se diluindo na
fluídica manhã.
Comemoro a
presença de Simão quando começo a escrever. Acho que a entrada dos personagens
numa criação artística deve ser celebrada discreta e humildemente, pois é o
começo de alguma coisa. O agradecimento deve ser guardado para a saída, quando
o texto termina.
A crônica
poética me ajuda a pensar na realidade desvinculada do presente irônico dos
tempos de hoje. Uma foto, por exemplo, mostra uma inocência irônica, passiva e
ilusória. A ficção permite que os personagens se materializem diante de nós
como nossos contemporâneos; sem as amarras do texto macarrônico.
Desperto dessa passagem com a garganta seca provocada pela baixa umidade. O
canto do galo ecoou mais uma vez. Soa como se fosse o toque de trombeta sobre a
cidade adormecida. Vigiai, ora, pois! Conheço pouco da grande corrente do
misticismo judaico, mas essa conversa de galo está chegando ao fim sem nuvem,
mas com o céu risonho de um azul translúcido.
Doracino Naves, jornalista; diretor e apresentador do programa Raízes
Jornalismo Cultural, na Fonte TV (www.programaraízes.net).
Escreve aos sábados no DMRevista.
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