Lembro que encostado numa banca de
raspadinha - gelo raspado por uma espécie de enxó - com adição de groselha - um
homem olhava decidido para as bandas da Liga dos Amigos da Vila Nova. Mais
tarde me contaram que a raspadinha vermelha lembraria a ele o Campari. De forma
que o abstêmio tomava ‘raspadinha’ de groselha ao invés da bebida alcóolica. Menos
mal. A verdade é que, embora exagerando na substituição do álcool por essência
escarlate, Hermegildo estava pronto para a matinê dançante no salão da Liga.
Vestira seu infalível terno marrom;
gravata borboleta azul com uma flor vermelha na lapela; cabelo partido ao meio
à Amigo da Onça. Com o peito estofado se mostrava, orgulhoso, às damas. Mas,
não percebi o interesse de nenhuma mulher que passava por ele. Decerto elas não
imaginavam que se tratava de um cavalheiro dançarino. Pensei isso, sem ao menos
saber se ele era bom de dança. Imaginei que essa seria a realidade. Ora bolas,
então, por qual razão alguém se vestiria dessa forma sob o sol causticante de
outubro; com o olhar firme como se estivesse às vésperas de uma estreia.
Alguém me disse que Hermegildo era
analfabeto, mas um grande dançarino. O fato de ser analfabeto não fizera
nenhuma diferença sobre o que eu pensava dele. Passei a admirá-lo porquê dançava
bem e eu não. Duro como uma estaca eu tentava me fazer ágil nos movimentos da
dança e, nada. Mas, curioso, aprendi a dançar bolero - somente bolero - nas
matinês dançantes de domingo nas casas daquela Vila Nova de sonhos. Resolvi
chegar mais perto do dançador. Perguntei-lhe qual o segredo para dançar bem. Primeira
regra: ser um perfeito cavalheiro respeitando as donzelas e seus acompanhantes.
Segunda: fazer o corpo seguir os mágicos movimentos da música. Dentro de um
salão de dança, disse-me, meus pés se movimentam ao ritmo das notas musicais.
Desde esse dia aprendi que o
conhecimento intelectual não é o bastante; o coração deve ser tocado pela graça
de Deus. Vi aquele homem assim: agraciado pela arte da dança e da música.
Perfeitas criações divinas. A ponto de fazer de Orfeu um exímio tocador de lira
a reanimar os argonautas na célebre viagem de Jasão. Até as brigas cessavam
quando Orfeu tocava. Também rendo graças a Davi, o suave cantor de Israel, que
tocava o coração de Deus com sua harpa. Hermegildo, o dançarino, confessou que,
se pudesse, viveria para sempre dentro de um salão de dança.
Tenho a alegria de olhar para trás
e perceber o romantismo medieval das danças de salão. Ando, a toda hora, com
minhas lembranças. Meus pensamentos são beliscados pelas impressões da vida. Hoje,
o som do bolero me pede para recomeçar. Recomeço na necessária desconstrução
das emoções. A orquestra celestial – com o Maestro a oriente de um imenso salão
- me espera com músicas suaves.
(Crônica publicada no jornal Diário da Manhã -DM-Revista - Goiânia - Goiás em 06 de outubro de 2012).
Doracino Naves, jornalista;
diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV
(www.programaraizes.net). Escreve aos sábados no DMRevista.
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