A Rogério Lucas. Saúde, amigo!
Vida dura foi a
da minha infância. Muito dura. O mundo fez-se luz nos meus olhos, imprimindo,
indelével, as cores do interior brasileiro na minha alma. O cenário onde nasci estava
pronto com um pedaço do planeta redivivo no interior de Minas Gerais. Porto dos
Barreiros, à beira do Rio Paranaíba, surgiu emoldurado pela vegetação da mata
Atlântica e do Cerrado mineiro. A natureza o inventou semeando milhões de
pequenas flores; plantadas no campo e nas margens gordas do rio. Minha aldeia tinha poucas
casas; todas cercadas por fazendas. A vida rural e a urbana se confundiam. E a
lida diária não dava folga a ninguém.
Em razão da penúria da primeira profissão de lavrador do meu pai, mal tínhamos
o suficiente para viver. Mesmo na roça, ele mantinha as aparências de família
tradicional. Vô Amâncio morreu quando meu pai era muito novo, tendo que
assumir, desde cedo, os cuidados com a mãe, Arlinda Naves. Viúva, ela enfrentou
muitas dificuldades para sobreviver até se casar pela segunda vez com o Vô
Gabriel. Com isso meu pai resolveu tocar a sua vida. Propôs ser arrendatário na
fazenda do Tio Quinzote. Depois, se casou com a minha mãe, Laudelina, que foi
ajudá-lo cozinhando para os peões, no eito dos trabalhos. A família Zequinha
Naves cresceu rápido. Vivíamos uma pobreza dignificada.
Nossa casa, na entrada da vila, fora alçada nos contrapés da
aroeira plainada à eixó; paredes em enxaimel revestidas de barro; o teto coberto
com folhas de jerivá trançadas. A avó materna, Floriscena, cuidava da casa
enquanto eles trabalhavam. A vida se tornava suportável com a ajuda dos
vizinhos.
Araguari,
sede do município, distava algumas léguas entre a serra contornada e o mato aberto
a machado para construir a estrada rústica. Do lado outro lado da porteira
morava a família João de Souza com uma penca de filhos - meninos e meninas -
estranhamente nus. Nunca entendi a razão daqueles meninos sempre pelados; a
pele tatuada pela sujeira. Fediam. Das duas, uma: desmazelo da mãe ou costume.
Costume mais besta, nunca vi!
No meio do caminho havia uma porteira. Através dela entravam os viajores;
também por ela saiam os meus sonhos. Como seria o mundo além da porteira da
minha rua? Um dia - digo que foi na primavera por causa de som manhoso de um
carro de boi rangendo sob o sol forte - soou a buzina rouca de um Fordinho 29.
Um som indecifrável incomodou os meus ouvidos. Curioso, corri até a porteira.
Abri-a com os olhos grudados no automóvel. O motorista com chapéu de feltro,
terno e gravata do começo do século passado, jogou uma moeda.
Peguei-a sem saber o significado daquele gesto largo. Ele me disse: -
É sua! Mordia-a para ver se era de verdade. Senti um gosto acre. Minha
mãe, que a tudo observava, guardou-a num improvisado cofre. Passei a ficar
atento à estrada para encher o cofrinho de moedas. Logo estava cheio. Numa
noite, entre sussurros à luz de lamparina, ouvi meu pai dizendo que deveríamos nos
mudar no sentido de buscar uma vida melhor. Imaginei uma cidade cheia de
fordinhos roucos. Pensei: - Algo interessante deve acontecer na vida
das pessoas numa cidade grande.
Mas, precisávamos atravessar aquela porteira. Atravessamo-la. Foi a
primeira das muitas que destramelo até hoje. Parece sina; quando abro uma
porteira lá vem outra a me desafiar:
Tem uma fila de porteiras no meu caminho.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 25 de agosto de 2012)
Doracino Naves, jornalista; diretor e
apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural(www.programaraízes.net), na Fonte TV.
Escreve aos sábados no DMRevista.