![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXJbQ2MKpJrx7HgxZbfNV_QmVJCOb_22V1iY2BBQYFNeQanBR7Zb9pbtDspvam5f4AU5lOJzx7nrVpLBi-i-c5_UVaoez8oal9nyC7Lg9_QwVh8nAg9nTVYL-fsOVuMI17tHKI7p9XRa0X/s1600/153639.jpg)
- E aí, qual o problema?
Procuro o fantasma de Simão que se esconde nas brumas das recordações. Respondo sem falar, esperando meus dedos tangerem o teclado.
- O problema é essa história bêbada, errante, nômade, que insiste em andar à toa pelos mais recônditos lugares da minha mente.
Pronto. A pergunta de Simão Sem Caráter soa como uma provocação e um estímulo para começar a minha crônica semanal. E o primeiro “problema” chega com o “para quem a gente escreve?” ou então, “por que escrevo?”. Tenho alguns amigos que se tornaram meus leitores fiéis. Outros dizem que leram, mas nem se recordam do tema. Assim é a realidadedo cronista.
Jorge Luis Borges, poeta argentino, dizia que o seu grupo de leitores era tão pequeno que não incluía nem ele mesmo; jamais lia os seus textos com medo de sentir vergonha do que tinha feito. Esse sentimento do ridículo faz bem ao escritor. Talvez o pior defeito de um escriba seja se achar suficiente em seu texto.
Simão Sem Caráter volta a me incomodar. Quer contar uma história. Diz que nasceu no ano de 1948, em Vale das Águas, uma cidadezinha à beira do Rio Araguaia. A maioria dos habitantes fora constituída de pescadores que vendiam peixes em Aruanã. Seu pai era um maranhense que chegara a pé na cidade; a mãe, bela, descendia dos índios Carajás. Seu pai, muito bonito, era altivo, forte, mas vivia de um jeito ameaçador. Bebia muito e era valente, dava medo. A mãe, muito submissa, vivia cuidando da casa.
Simão tinha um amigo inseparável, Adolfo, meio surdo, que vivia lhe perguntando se ouvia bem a algazarra dos pássaros ou o ruído da mata. O som de um trovão, por exemplo, que chegava abafado aos ouvidos do amigo, incomodava lhe a ponto de encolher os ombros e tapar os ouvidos. Em compensação Simão, míope, não via bem a forma das coisas vistas de longe. Os dois se completavam.
- Eu ouvia bem, ele enxergava longe.
Nas pescarias, então, enquanto Simão ouvia o barulho da água, dos peixes e da floresta, Adolfo via nitidamenteo que se passava à sua volta. Os dois cresceram juntos até se tornarem rapazes.O estranho é que nunca soube que Adolfo tinha uma família.
De volta para casa numa tarde quase-noite, depois de andar horas à procura de seu pai bêbado que se recusara em voltar com ele, ouviu o grito da sua mãe vindo da casa construída de pau-a-pique à beira do rio. Apressou os passos a tempo de vislumbrar um vulto mergulhando na água azul de junho. Sua miopia lhe impedira de ver melhor. Chegou a tempo de ver a mãe ainda agonizando. Com o corpo nu, dilacerado, inclinou a cabeça ao rio. A mão direita apontou naquela direção e caiu na areia ainda quente do sol. Era tarde. Estava morta.
As moscas varejeiras, arautos da putrefação,zuniam sobre o corpo da mulher. Um urubu solitário, talvez a sentinela do grupo, pousou no pequizeiro sem flor. Seu pai, ainda trespassado de pinga, chegou ruidoso à porta do casebre. Pareceu nem se abalar com a tragédia.
- Foi o boto quem fez isso. Ela matou a sua mãe e fugiu.
Adolfo também desaparecera; nunca mais foi visto por Simão. O resto é silêncio.